quinta-feira, 30 de julho de 2009

Toi, mon ami...

Semana passada, além de todas as peripécias que contamos, encontramos um sábio africano! é, acho que podemos chamar assim nosso novo amigo Fidèle Toé. Ele nos foi indicado por um colega da instituição que me recebeu por aqui (UGCPA). Não sabemos ao certo sua idade, mas tem seus cabelos brancos, e por ser um negro vocês sabem que isso significa muita experiência! Ele é do ramo das comunicações, foi jornalista, documentarista e entre idas e vindas trabalhou um bocado em contextos multiculturais, ou melhor ajudando ocidentais a entenderem um pouco melhor as culturas locais (daqui da região onde estamos). Fala sei quantas línguas, viajou pra tudo quanto é canto e em nossa primeira conversa nos indicou um livro: Toi, mon ami (Você, meu amigo), escrito por um canadense André Beaudoin, que viveu em Dédougou um tempo, e teve a sorte de encontrar o Fidèle para ajuda-lo em sua integração às comunidades daqui. O livro é um relato das impressões de um ocidental face às tradições locais, e por varias vezes é transcrição de diálogos entre o autor e o próprio Fidèle. D e v o r a m o s esse livro! e voltamos a procurar Fidèle para discutir alguns pontos mais intrigantes!

Ele não conversou com a gente sobre o livro, nos recebendo em sua casa, mas também passou o resto do dia com a gente, nos levando em locais históricos da cidade, nos apresentando pra todo mundo que encontrava pelo caminho, nos levando pra tomar cerveja e depois pra jantar! Uma recepção digna da impressão que vínhamos fazendo dos burkinabeses.

Na nossa conversa sobre o livro, um dos assuntos que mais nos interessou é como as comunidades locais lidam com a morte. "O nascimento pertence à mãe, a vida pertence ao individuo, a morte pertence à sociedade." Fidèle nos explicou como que muitas vezes o tempo entre a morte e o enterro pode ser bastante longo, o importante é ter tempo suficiente para que os conhecidos do falecido venham ao enterro, e todos os preparativos possam ser feitos à altura daquele que se foi. Por um lado, o enterro é um momento solene de homenagens ao que se foi: um representante de cada ramo da sociedade em que o individuo atuou (um familiar, um colega do trabalho, um vizinho, ...) toma a palavra para dizer como e porque o falecido fez a diferença nesse domínio. O mais interessante é que, além desse caráter de homenagem, esse evento é uma verdadeira coletânea oral dos conhecimentos do falecido, uma maneira de transmitir a todos os presentes um pouco do saber daquele que se foi. Trata-se no fundo do famoso KM (knowledge management, gestão de conhecimentos) que todas as empresas do ocidente penam para colocar em pratica atualmente! e eles fazem isso pra toda a sociedade! uma reciclagem oral da sabedoria do falecido para que seu conhecimento possa se integrar ao da sociedade. Por isso eles dizem que a "morte pertence à sociedade"!

Aqui, cada individuo tem o seu valor, independentemente das suas conquistas profissionais ou pessoais. Após a morte, por mais simples que tenha sido a vida do falecido, haverá sempre pessoas lembrando o que ele sabia, o que ele representou para cada um dos que ficam.

Uma outra coisa fantástica sobre o povo burkinabês que descobrimos com o Fidèle é a "familiarité par plaisanterie" (familiaridade por gozação), uma brincadeira com consequências muito sérias e positivas para a paz do pais! poderia ser visto como uma estratégia geopolítica! e alias, deveria! assim quem sabe povos tão diferentes no mundo poderiam brincar sobre suas diferenças ao invés de instigar guerras com base nelas. Existem muitas etnias no Burkina Faso (mais de 60!), no passado guerras foram travadas entre essas etnias pelo controle do território. Não se sabe bem quando nem como, mas instituiu-se na cultural geral uma espécie de permissão à gozação entre algumas etnias. Assim eles se permitem "zoar" uns com os outros, aceitando tudo com bom humor, o que serve como valvula de escape para a tensões que poderiam ser criadas pelas diferenças. Essas brincadeiras são feitas de maneira sistemática! Por exemplo: cada vez que um Samo encontra um Mossi, ele vai fazer uma piada sobre a fraqueza/estupidez/covardia/falta de educação dos Mossi, e o Mossi vai responder à altura! é uma maneira fantástica deles conhecerem novas pessoas! presenciamos o Fidèle soltando uma gozação no ar, assim como quem não quer nada, e gerar uma reação em outras mesas, o que ja serve de desculpa para puxar um papo com desconhecidos. Pra gente, presenciar esse jogo social é uma maneira divertida de conhecer as diferenças étnicas daqui. Sem a familiaridade por gozação dificilmente etnias tão diferentes como as presentes no Burkina teriam conseguido viver em paz durante tanto tempo. Mais uma lição pra todos nós! Quem dera palestinos e israelitas levassem a sério essa brincadeira!

O Fidèle será um conselheiro para a minha tese, mas sabemos que o que aprenderemos com ele ira muito além do trabalho acadêmico! é o que finalmente viemos buscar aqui na Africa! :-)